23 abril 2013

Tai-Pan

...Houve um ruído de vozes cadenciadas, e a porta se abriu com violência, deixando entrar, uma suja jovem Hoklo - a gente que vivia nos barcos - e um criado tentando segurá-la.  A mulher usava o grande chapéu cônico costumeiro, o sampana, calça e blusa negra e encardidas e, sobre elas, um também encardido colete acolchoado.
-Ninguém pudê pará esta vaca cria aqui, sinhô - disse o criado, numa corruptela de inglês falado na China, enquanto segurava a moça que lutava. Só através dessa corruptela os negociantes podiam conversar com seus criados e vice-versa. "Vaca" significava "mulher". E "cria" era uma variante de "criança". "Vaca cria" significava "jovem mulher".
-Vaca cria sai! E bem depressa, entendido? -disse Struan.
-Quer vaca cria, quer? Vaca cria é boa na cama, dois dólar tá bom - gritou a moça.
O criado agarrou-a e o chapéu dela caiu possibilitando a Struan ver seu rosto claramente pela primeira vez.
Ela quase não estava reconhecível, por causa da sujeira e ele morreu de rir.
O criado ficou boquiaberto diante dele, como se ele estivesse louco, e soltou a moça.
- Essa cria de vaca - disse Struan em meio às risadas -pode ficar, não se preocupe.
A moça limpou iradamente suas repugnantes roupas e  gritou outra torrente de insultos para o criado que partia.
-Vaca cria muito boa, você vê Tai-Pan.
-É você, May-may! -Struan olhou para ela - Que diabo está fazendo aqui, e qual o motivo de toda esta sujeira?
-Vaca cria acha que você está fazendo pim-pim com nova vaca cria, né?
-Pelo sangue de Cristo, garota, estamos sozinhos, agora! Pare de usar inglês pidgin! Gastei bastante tempo e dinheiro ensinando a você o inglês da Rainha!- Struan ergueu-a até onde os seus braços alcançaram. - Meu Deus, May-may, você está fedendo tanto que se sente à distância. 
-Você também fedê se usa estas roupas fedolentas!
-Federia, se usasse estas roupas fedorentas - ele disse corrigindo-a automaticamente. -O que está fazendo aqui, e qual o motivo de usar essas roupas fedorentas?
-Me bota no chão, Tai-Pan. - ele assim fez e ela se curvou com tristeza.
-Cheguei aqui em segredo e com grande tristeza pela sua perda da suprema senhora e de todas as crianças que ela teve, menos um filho. As lágrimas faziam sulcos na sujeira de seu rosto.- Sinto muito, sinto muito!
-Obrigado, garota. Sim. Mas agora já aconteceu e não há dor que possa trazê-los de volta. ele deu pancadinhas na cabeça da moça e acaricio-lhe o queixo, tocado por sua compaixão.
-Não conheço seus costumes, como devo me vestir em sinal de luto?
-Não ponha luto, May-may. Eles foram embora. Não adianta todo o pranto nem todo o luto.
-Queimei incenso para um perfeito renascimento.
-Obrigado. Agora, o que está fazendo aqui? E porque partiu de Macau? Eu lhe disse para ficar lá.
-Primeiro banho, depois mudar de roupa, depois conversar.
-Não temos roupas aqui, May-may.
-A tola da minha ama Ah Gip está lá embaixo, ela carrega roupas e minhas coisas, não se preocupe, onde é o banheiro?
Struan puxou a corda do sino, e, imediatamente apareceu o servo com os olhos arregalados. 
-Vaca cria quer banho, sabe? Ama pode fazer tudo. Pegue comida! - e depois para May-may -Diga que comida quer.
May may conversou com o criado boquiaberto, em tom imperioso e saiu.
Seu modo de caminhar oscilante jamais deixava de comover Struan. May may tivera os pés atados. eles tinham apenas três polegadas de comprimento. Quando Struan a comprara, há cinco anos, cortou as ataduras e ficou horrorizado com a deformidade que os antigos costumes tinham decretado ser um sinal essencial de beleza para uma moça - pés pequenos. só uma moça com pés pequenos - pés de lótus - poderia ser uma esposa ou uma concubina. As que tinham pés normais tornavam-se camponesas, criadas , prostitutas de baixa classe, amas e operárias, e eram desprezadas.
Os pés de May may eram aleijados. Sem o apertado envoltório das ataduras, a agonia que ela sentira causava pena. Então Struan permitiu que as ataduras fossem recolocadas, e, após um mês a dor já diminuíra e May may pudera andar outra vez. Só na velhice os pés atados se tornavam insensíveis à dor.
Struam perguntara-lhe então, usando Gordon Chen como intérprete, como aquilo fora feito. Contara-lhe, orgulhosamente, que sua mãe começara a atar seus pés quando ela tinha seis anos.
-As ataduras eram bandagens de duas polegadas de largura e doze de comprimento, e úmidas. Minha mãe amarrou-as com força em torno dos meus pés...em volta dos calcanhares e sobre o peito e planta dos pés, dobrando os quatro dedos menores por baixo da planta da sola e deixando livre o dedo grande. Quando as bandagens secavam e se apertavam, a dor era terrível. No curso dos meses e anos, o calcanhar se aproxima do dedo  e o peito se arqueia. Uma vez por semana, as bandagens são retiradas por alguns minutos e os pés lavados. Depois de alguns anos os dedos menores ficam encarquilhados e mortos, e são removidos. quando eu tinha quase doze anos, podia andar muito bem, mas meus pés ainda não eram suficientemente pequenos. Foi então que minha mãe consultou uma mulher entendida na arte de atar os pés. No dia do meu décimo segundo aniversário, a sábia mulher veio para nossa casa com uma faca aguçada e óleos. Ela fez um profundo corte com a faca na sola dos meus pés. Esse corte fundo permitiu que o calcanhar fosse empurrado para mais perto dos dedos, quando as bandagens foram recolocadas.
- Que crueldade! Pergunte a ela como suportou a dor.
Struan lembrava do seu olhar trocista quando Chen traduziu a pergunta e de como ela respondeu numa cadência encantadora.
- Ela diz: "Para cada par de pés atados, há um lago de lágrimas. Mas o que são as lágrimas e a dor! Agora não tenho vergonha de deixar ninguém medir meus pés." Ela quer que o senhor os meça Sr. Struan.
-Não vou fazer uma coisa dessas!
-Por favor, senhor. Isso a deixará muito orgulhosa. Eles são perfeitos dentro do estilo chinês, se não o fizer ela vai pensar que o senhor está envergonhado dela, perderá prestígio terrivelmente diante do senhor.
-Por quê?
-Acha que o senhor tirou as bandagens porque pensou que ela o estava enganando.
-Mas porque eu pensaria assim?
-Porque o senhor é...bom, ela não conhecia nenhum europeu, antes. Por favor, senhor, Só o orgulho que sentir por ela compensará todas as lágrimas.
Então ele medira seus pés e manifestara uma alegria que não sentia, e ela se prosternara diante dele três vezes. ele detestava ver homens e mulheres prosternando-se, com a testa a tocar o chão. Mas o costume antigo pedia este costume de obediência de um inferior a seu superior, e Struan não podia proibi-lo. se protestasse May may ficaria assustada outra vez e se sentiria embaraçada diante de Gordon Chen.
-Pergunte se seus pés estão doendo agora.
-Vão doer sempre, senhor, mas eu lhe garanto que ela sentiria muito mais dor se seus pés fossem grandes e feios.
May may então disse algo a Chen, e Struan reconheceu a palavra fan-quai, que significava "demônio bárbaro".
-Ela quer saber o que fazer par agradar um não chinês, disse Gordon.
-Diga a ela que os fan-quai não são diferentes dos chineses.
- Sim senhor.
- E lhe diga que você vai lhe ensinar inglês. Imediatamente. Diga-lhe que ninguém pode saber que ela pode falar inglês. Diante de outro deve falar só chinês, ou pidgin, que você também lhe ensinará.
Finalmente, você a protegerá com sua vida.

Extaído do Livro de James Clavell, Tai-Pan, publicado no Brasil pela Editora Record

Foto: Escultura que fiz em cerâmica no ano de 2005.
Está com colecionadores de Brasília.

14 abril 2013

Metanóia, Yogaterapia e a Despacientização: Prof° Hermógenes


Entrevista concedida pelo professor Hermógenes ao Pedro Kupter da Revista Yoga, na época do lançamento de seu livro Saúde Plena: Yogaterapia. Transcrevo aqui alguns trechos da entrevista publicada na revista n° 08 - Ano l pela editora Escala.

*Por que a Yogaterapia é ideal?
Prof° Hermógenes: A experiência deste método está no seguinte: não é propriamente um tratamento, e sim um treinamento, e isso faz uma grande diferença. Num tratamento supõe-se uma dualidade - de uma lado o terapeuta (ou médico) e do outro o paciente. A palavra paciente indica que alguém está recebendo passivamente, sem nada fazer, nem dar. Na Yogaterapia, não existe a figura do paciente, pois cada um deve desenvolver um treinamento sobre si mesmo, sendo simultaneamente terapeuta e atuante. ambos são um só, e assim, despacientiza-se a medicina.

*Quais seriam as consequências?
Prof° Hermógenes: Há imensas e boas consequências. Primeiramente gera uma coisa preciosa: a autoconfiança, acabando com a dependência de medicamentos, massagens, agulhas, práticas aplicadas por outrem em você...
A Yogaterapia é o treinamento do homem-todo, um treinamento multifrontal. Mas há uma série de coisas a fazer para dar ao corpo as melhores condições de performance e duração de bem-estar. Trata-se de um trabalho sobre o físico, o energético, sobre as emoções (sentimentos, sensualidade), sobre os pensamentos e um trabalho em busca da união com o Logos, com Deus. Isso tudo realiza-se simultaneamente, sinergicamente: a ação unificada de todos esses níveis do ser.

*Num de seus livros, o senhor diz que Satã é sinônimo de sectarismo. O ecumenismo daria o tom desta Nova Era?
Prof° Hermógenes: A palavra ecumenismo já tem sofrido certas distorções e prefiro dizer "universalismo". No Brasil quando se fala de uma festa ecumênica, imagino um padre, um pastor e um rabino dizendo: "como é bom o ecumenismo, já que não entrou nenhum espírita aqui". Não gosto desse ecumenismo, pois nele ainda existe uma participação daquela chamada tolerância religiosa. O sujeito, julgando-se superior, tem a "caridade" de "tolerar" os "erros religiosos" dos demais.
Também a tolerância religiosa é um tipo de egosclerose. eu devo amar a religião do outro e se o outro estiver amando uma Forma e um Nome de Deus que não correspondem aos meus, tenho a obrigação e o desejo de amar a Deus na Forma e com o Nome que ele concebeu. 
A isso chamo inclusivismo universalista.

*Segundo o senhor, há dependentes de drogas, afeto, sucesso e sexo, e estes seriam os escravos modernos. Como abolir esta escravidão?
Prof° Hermógenes: Através da humildação. atrás de tudo isso está o ego querendo poder, prazer e procurando o status. O resultado é essa desgraçeira toda, nos outros e nele próprio. A dependência é o império do ego.

*O senhor observa que no prazer há um risco de perdição e que a dor seria um caminho de evolução. Não haveria um risco de culto ao sofrimento, como já houve em certa fase cristã?
Prof° Hermógenes: Claro que sim. Há o risco do masoquismo, e é por isso que nos meus livros faço tantos alertas. É preciso lutar com todas as forças que você tem, mas quando todas as forças falharem e a dor envolver você, aceite a dor. Entregue seu sofrimento a Deus. e não espere alívio Dele. espere o que ele mandar. O esforço do Yoga da sabedoria é vencer a ignorância, para que você se deslumbre e se liberte ao descobrir aquilo que você é, que é Deus. Nós somos Deuses, Somos a Divindade.

*Para o senhor, Deus é essencialmente bom e o aspecto negativo da ação cósmica ficaria por conta da Lei do Karma. Não haveria mal em Deus? Satã não pertence ao corpo da Divindade?
Prof° Hermógenes: Pertence, Satã também é Deus, mas é o aspecto contrário criado por nós.
Satã é resultado da nossa ignorância. é o corrupto, o pistoleiro, o que massacra crianças, é aquele que força uma jovem desamparada...Mas esse também é Deus. o pior dos facínoras só aparentemente é facínora, porque, na essência, ele é Deus. É duro entender isso, mas como nos traz alívio e a possibilidade de amar e solucionar as coisas.

*Como sair dos atuais impasses?
Prof° Hermógenes: Para que não haja o caminho de volta, é preciso atingir um ponto de sofrimento maior, o ponto de mutação, e a humanidade está passando por isso agora. tudo está se esboroando. Não só no Brasil. Estamos na hora da agonia. Já vivemos a hecatombe...não é necessário uma onda de 60 metros. Mas a própria juventude já sente dentro de si uma convocação para algo diferente. As drogas levaram à servidão, o sexo selvagem resultou em AIDS...Está na hora da humanidade despertar para o caminho de volta.
Estamos assistindo a um fenômeno que os gregos denominaram metanóia, ou seja, a mudança da mente.
Isso já está ocorrendo.
Estamos saindo das trevas e há muita manifestação de amor nesta hora. Espero que essa entrevista toque o coração de muita gente, e que eles posam fazer sua metanóia, voltando-se para Deus, pois Ele ainda está de braços abertos.
"A yogaterapia restabelece o equilíbrio psicofísico e energético, através de exercícios em que as técnicas do yoga são aplicadas de modo especificamente terapêuticos caso a caso, de acordo com uma prévia avaliação. O terapeuta avaliará, dependendo da desordem apresentada, a condição física, psicológica e energética da pessoa, elaborando assim um programa que leva a recuperação da saúde e trazendo uma melhor condição de vida à pessoa, Além de asanas (posturas) pranayanas, relaxamento e meditação adequados a cada indivíduo e sua problemática, a Yogaterapia orienta também quanto à alimentação." Bernardo Horta

Fotos: Manu, minha sobrinha, filha de Luciana, nesta páscoa. Abaixo: meu neto, Davi e meu caçula, Joseph.

02 abril 2013

Sobre os Diletantes





"...ainda hoje todo o pesquisador luta entre os fogos cruzados do público e do mundo especializado. Os relatos de Schliermann tinham um público diferente dos das Circulares de Winckelmann. O homem mundano do século XVIII escrevera para as pessoas cultas, para o pequeno círculo dos preferidos, para os que possuíam museu, ou, pelo menos, obtinham acesso a eles porque pertenciam ao mundo de uma corte. Esse pequeno mundo foi sacudido pela descoberta de Pompéia, ficava encantado com a escavação de uma só estátua, mas o seu interesse nunca ultrapassava o ambiente restrito do estético-artístico. A influência de Winckelmann foi penetrante, mas precisava do veículo dos poetas e escritores para irradiar da estreita zona da cultura toda a profundeza e largura do seu tempo.
Schliemann influía diretamente, sem intermediários, dava publicidade a cada nova descoberta, e ele próprio era o que mais se maravilhava diante dessas descobertas. Suas cartas corriam o mundo inteiro e os seus artigos apareciam em todos os jornais. Scliemann teria sido homem de rádio, do cinema, da televisão se já existissem na época. suas descobertas em Tróia provocaram um torvelinho não só no restrito mundo da gente culta, mas em toda parte. As descrições de estátuas por Winckelmann haviam interessado aos estetas e encantado os entendidos. As descobertas de ouro de Schliemann interessavam a homens de uma época que na sua terra se chamava "época dos pioneiros", homens que vogavam sobre a maré da prosperidade econômica, que apreciavam o "self-made man", que possuíam bom senso e se colocavam ao seu lado quando os "puros cientistas" voltavam as costas aos "leigos".
Um diretor de museu alguns anos depois das reportagens de Scliemann de 1873, escreveu: "Na época dessas reportagens reinava grande excitação tanto entre os eruditos como entre o público. Em toda parte, em casa e nas ruas, nas diligências e nos vagões de estrada de ferro, se falava em Tróia. Todo mundo estava cheio de espanto e interrogações".
Se Wickelmann, como diz Herder, "apontara de longe o segredo dos gregos", Schliemann já havia desvendado a sua pré-história. Com incrível arrojo havia tirado a Arqueologia da luz do petróleo dos gabinetes de estudo para a luz do sol de um céu helênico e resolvido a questão de Tróia com a pá. Rompendo o circulo da filologia clássica, dera um passo para o interior da pré-história viva e alargara uma ciência clássica em torno da pré-história.
A rapidez com que foram tomadas estas medidas revolucionárias, a acumulação dos resultados, a personalidade dúbia de Schliemann, não de todo comerciante, não de todo erudito, e, não obstante, ambas as coisas com extraordinário êxito, o "feitio publicitário" de suas publicações chocaram o mundo internacional dos sábios, e entre eles, particularmente, os alemães.
A extensão da revolta pode ser avaliada pelo número de 90 publicações sobre Tróia e Homero, que, nesses anosa das atividades de Schliemann, saíram rapidamente dos gabinetes de estudo. O principal ponto de ataque contra o qual os eruditos assestavam suas baterias era o diletantismo de Schliemann.
No decorrer da história das escavações sempre encontraremos novamente os arqueólogos profissionais a amargurara a vida daqueles que apenas estavam dando o impulso para o novo salto no escuro.
Visto os ataques a Schliemann serem  de importância básica, aqui vão algumas palavras e citações de shopenhauer:
-Diletantes, diletantes! Tais são os que praticam uma ciência ou arte por amor a ela ou por prazer nela, 'per il loro diretto'; assim são chamados por desprezo por aqueles que a ela se dedicaram por amor ao lucro, porque a eles só deleita o dinheiro que possam ganhar com isso. Esse menosprezo baseia-se na sua infame convicção de que ninguém se dedicará seriamente a uma coisa quando a isso não o estimule, a necessidade, a fome ou qualquer outra cobiça. O público é desse mesmo espírito e, por isso, dessa mesma opinião: dai nasce seu absoluto respeito pelos 'homens de especialidade' e sua desconfiança dos diletantes. 
Na verdade, para o diletante, a causa é o objetivo, ao passo que para o especialista, como tal, é apenas um meio; mas só se dedicará a uma causa com toda seriedade aquele que por ela se interessar imediatamente e se ocupar dela com amor, praticando-a con amore'. Desses tais, e não dos servos do salário, sempre partirão as maiores coisas.
O Prf. Wilhelm Dörpfeld, colaborador, conselheiro e amigo de Schliemann, um dos poucos especialistas que a Alemanha colocou ao seu lado, escreveu ainda em 1932: Contudo, nunca compreendeu a zombaria com que vários eruditos, e especialmente muitos filólogos alemães, acompanhavam os seus trabalhos em Tróia e em Ítaca. eu mesmo sempre lastimei esse escárnio com que alguns grandes sábios, mais tarde, contemplaram também minhas escavações em lugares homéricos, e o considerei não só injustificado mas também anticientífico!
A desconfiança do "especialista" pelo "outsider" bem sucedido é a desconfiança do burguês pelo gênio. O homem de carreira assegurada despreza o pesquisador de zonas inseguras e que não faz disso meio de vida. esse desprezo é injusto.
Por mais longe que remontemos à pesquisa científica, não é difícil verificar que um número extraordinário de descobertas foi feito pelos "diletantes", ou até, "autodidatas" que, levados pela obsessão de uma ideia, não sentiram o freio de uma formação especializada., as vendas do especialismo, e saltaram por cima das barreiras erguidas pela tradição acadêmica.
Otto Von Guericke, o maior físico alemão do século XVII, era jurista de profissão.
Benjamin Franklin, filho de um modesto fabricante de sabão, tornou-se, mesmo sem formação ginasial e universitária, não só um político ativo (para o que podem bastar algumas qualidades menos importantes), mas mas também um sábio de valor.
Galvani, o descobridor da eletricidade, era médico e, segundo prova Wilhelm Ostwald em sua "História da Eletroquímica", deveu sua descoberta justamente a deficiência de seus conhecimentos. Fraunhofer, autor de eminentes trabalhos sobre o espectro, até aos 14 anos não sabia ler nem escrever. Michael Faraday, um dos mais importantes naturalistas, era filho de um ferrador de cavalos e começou como encadernador. Julius Robert Mayer, descobridor da lei da conservação da energia, era médico. Também era médico Helmholtz, quando, aos vinte e seis anos, publicou seu primeiro trabalho sobre este mesmo assunto.
As obras mais notáveis de Buffon, matemático e físico, tratam de geologia.O homem que construiu o primeiro telégrafo elétrico foi o professor de anatomia Thomas Sömmering. Samuel Morse era pintor, assim como Taguerre. O primeiro criou o alfabeto telgráfico, o  segundo inventou a fotografia. Os obcecados criadores do aerostato dirigível Zeppelin, Gross  e Parseval, eram oficiais e não tinham nenhuma ideia sobre técnica.
A lista é infinita. Se se afastassem estes homens da história das ciências, toda a sua estrutura desabaria. E, contudo, no seu tempo tiveram de suportar zombaria e escárnio.
A lista prossegue na história da ciência que aqui tratamos. William Jones, que forneceu as primeira boas traduções do sânscrito, não era orientalista e sim relator-chefe em Bengala. Grotefend, o primeiro decifrador de uma escrita cuneiforme, era filólogo clássico. Seu sucessor, Rawlinson era oficial e político.  Os primeiros passos no longo caminho da decifração dos hieróglifos, deu-os Thomas Young, médico, e Champolion, que chegou à meta, era realmente professor de história. Humann, que desenterrou Pérgamo, era engenheiro de estrada de ferro.
Basta esta lista para o que deve ser dito aqui? 
Não se pode especificar claramente tudo aquilo que distingue um especialista. Mas o que importa não é o resultado, desde que os meios sejam limpos?
Não merece os "outsider" a nossa especial gratidão?
Sim, Schliemann cometeu graves erros nas primeiras escavações. demoliu antigas construções que eram preciosas, destruiu muralhas que teriam sido indícios importantes. contudo, o grande historiador alemão E. Mayer concedeu-lhe isto: Para a ciência ficou demonstrado ter sido altamente benéfico o procedimento não metódico de Schliemann no sentido de ir direto ao solo primitivo. Numa escavação sistemática dificilmente teriam sido descobertas as camadas mais antigas da colina e, com isso,  essa cultura que designamos como a propriamente "troiana".
Foi uma trágica fatalidade o fato de terem sido erradas quase todas as suas primeiras interpretações e datas. Mas Colombo, quando descobriu a América, julgou ter encontrado a Índia. Acaso isso diminui o seu feito?



Extraído do livro Deuses Túmulos e Sábios, 
de C W Ceram, publicado  pelo Círculo do Livro

Foto: Rosa no jardim do meu prédio.